Estar Disponível

Um dia destes, ao almoço com um amigo e companheiro de trabalho, dei por mim a dizer-lhe: devo estar a ficar velho, porque cada vez sinto mais a falta de disponibilidade das pessoas umas para as outras, e continuei na minha zanga, estou farto de estar com amigos que me esvaziam os problemas em cima e nem sequer perguntam se estou bem. Ele olhou para mim, sorriu e disse-me: olha, então estamos os dois a ficar velhos, porque também sinto isso. E continuámos a conversa, reflectindo sobre as várias hipótese da razão deste nosso comum sentimento: será que a nossa profissão faz com que os outros nos vejam sempre como escutadores, será que estávamos nesse dia pessimistas e o mundo não é tão mau como nós o pintámos, ou será que a disponibilidade de uns para os outros é cada vez menor? Neste último caso o aforismo popular «cada um sabe de si e Deus sabe de todos» ganha cada vez mais adeptos. Penso que a necessidade para alguns de recorrer a profissionais para falarem de si está muito relacionada com a solidão sentida por estas pessoas. Excluindo as chamadas doenças mentais, quem procura ajuda psicológica está numa situação de grande isolamento, que não é físico, mas que por qualquer motivo levou a que a comunicação com os outros se fechasse. Quando falamos de nós com alguém, aquilo que pedimos é que nos percebam e nos oiçam. Ao falarmos com pessoas que connosco estão muito envolvidas afectivamente, a resposta que muitas vezes nos espera não é de compreensão, porque o outro «depende» das nossas atitudes. Um filho ao falar com o pai pode ter o apoio desejado ou pode obter uma resposta negativa que ao repetir-se pode levar ao corte da comunicação. A mulher ao falar com o marido das suas preocupações com a relação com a mãe dela, pode levar o marido, nalgumas situações, a reagir ao excesso de sogra e desajudar a mulher. A relação de amizade é na minha opinião a mais despojada de confusões, a mais liberta de dependências e aquela que nos pode ajudar muito quando passamos maus bocados que envolvem outras relações importantes para nós. Os adolescentes criam amigos com grande facilidade e abrem-se com eles. Depois com a passagem a adultos alguns amigos mantêm-se, outros desaparecem. O início da actividade profissional estabiliza algumas amizades, mas a cada mudança de trabalho é preciso um esforço para não perder as amizades aí criadas. O início da vida a dois é outro passo difícil na amizade. O outro nem sempre aceita com facilidade os amigos, ou porque tem ciúmes ou porque gosta mais de outro tipo de pessoas. E perdem-se amigos assim. À medida que nos vamos tornando mais velhos, aumenta a facilidade com que fazemos conhecidos, mas diminui a probabilidade de fazermos amigos. Aumenta a nossa disponibilidade para o trabalho produtivo e para a carreira profissional e diminui para o estar calmamente a conversar com os amigos, sem nos preocuparmos com o tempo. O dinheiro é cada vez mais um valor importante e a amizade não é produtiva. Este ano na praia fiquei impressionado, porque cada vez que ouvia aquelas conversas moles de beira água entre amigos só se falava de dinheiro, impostos, negócios. E não me venham dizer que o povo passa dificuldades e por isso é que está preocupado, porque aquele povo não tem qualquer espécie de dificuldades. Mas isto é um aparte!As cidades esquartejam as relações e exigem de nós uma muito maior disponibilidade para procurar amigos. Quem não passou já pela situação de propor a um amigo um encontro e ouvir: hoje não que estou estoirado, amanhã tenho de me levantar cedo, estou cheio de problemas no emprego. É curioso ver como mesmo entre grandes cidades como Lisboa e Porto as diferenças são apreciáveis: no Porto ainda se passa por casa dos amigos sem aviso, os cafés são ainda um ponto de encontro quase diário, as festas de fim-de-semana mais frequentes.Estar disponível numa sociedade que confunde objectivos individuais com o salve-se quem puder é um desafio estimulante que nos permite o prazer de entrarmos nos outros e de deixar que nos entrem cá dentro.

(Texto escrito pelo Dr. José Gameiro e retirado do livro "Crónicas" das Edições Afrontamento.)

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