Tenras idades, tenros ossos (Escrito por Sivuca)

Tenras idades, tenros ossos.

Duro é o chão, dura é a realidade.

Duro é fazer descer um enorme sapo pela goela abaixo, engolindo uma viscosidade repulsiva sem poder decidir, sem ter direito a opção.

Descobrir que o nosso desporto é mesmo tão perigoso dói e muito.

O que parecia sonho ou pesadelo, de um segundo para o outro transforma-se em crua e dolorosa realidade.

Constatar esta verdade, imposta pelo acaso (se é que isto existe), atirado contra o chão pela sorte ou pela falta dela, é chocante como quase nada igual. Fazer o mesmo por pura imprudência é no mínimo uma grande pena. Lembro-me quando uma pessoa que conheço me contou que descobriu que o Pai Natal não existia, num fatídico dia de Natal em que o seu pai, após uma briga com a sua mãe, saiu de casa batendo com as portas e deixando todos sem presentes. A mãe, como não podia permitir tamanho acto com os seus filhos tão novinhos, colocou-os no carro e juntos saíram nas curvas da noite atrás duma loja aberta para as compras de natali. Muito mais sério que quase ficar sem presentes, foi descobrir que não era o Pai Natal quem os trazia, mas os pais... e que estes, lamentavelmente podiam esquecer-se de algo que eles mesmo
diziam: "O Pai Natal nunca se esquece das crianças boazinhas".

Teria sido eu um menino malvado?, pensava o Joãozinho enquanto apertava os dentes tentando suportar a dor de seus ossos partidos, tentando recuperar o fôlego que desaparecera dos seus pulmões, agora ávidos pelo direito básico de respirar.

Então, Joãozinho precisou de partir alguns ossos para finalmente acreditar naquilo que o seu mestre lhe dizia. Precisou romper alguns ligamentos, ganhar alguns hematomas e arranhar a alvura de sua pele para constatar que apesar de parecer muito estável e seguro, o parapente podia também transformar-se não só numa máquina assassina, mas num veículo incontestavelmente eficiente para a vida eterna, ou para o além-túmulo, ou para a grande passagem ou para muitos outros nomes que muitos outros Joãozinhos podem preferir chamar.

Então, Joãozinho descolava e olhava para cima, incrédulo. Diante da solidez do brinquedo que jazia sobre a sua cabeça, incólume, Joãozinho questionava a conversa do professor. "É muito difícil acreditar naquilo que não se vê", dizia ele.

Seus amigos incentivavam-no, os seus familiares aplaudiam, a televisão fazia entrevistas, o seu nome aparecia nos media.

No final da adolescência, Joãozinho era um fenómeno. Nunca alguém tão novinho voara de parapente e a notícia voava como a da nudez da Floribela, ou o milésimo golo do Cristiano Ronaldo.

Joãozinho voltava os olhos para cima novamente e o seu parapente respondia-lhe com toda a sua solidez. Aquela máquina parecia indestrutível. Olhava para baixo e via os olhares perplexos da multidão que com os seus pescoços doídos, faziam questão de acompanhar cada movimento do piloto-prodígio, capaz de descolar nas condições mais sinistras e voar nas térmicas mais turbulentas.

De volta no chão, Joãozinho sentia-se completamente incluído no grupo. Apesar da sua tenra idade, era visto como um piloto e, portanto, vários degraus acima dos meros mortais que os de sua classe, degladiando-se nos campos de futebol de salão, nas piscinas de natação, nos ringues de hóquei ou até nas pistas de corridas. Aqueles putos podiam competir entre si, disputar quem tinha mais gigabytes no seu IPod,
confirmar quem fazia mais pontos no último jogo de ação, enquanto que o Joãozinho pairava sobre todos eles.

As vezes ele guardava isto para si, mas no mínimo repetia na sua cabeça, a sua verdade pessoal, Joãozinho estava por cima, inclusivamente dos seus colegas trintões e quarentões, já que estes levavam anos para aprender a enrolar térmicas, ou fazer uma curvas ridículas, enquanto que para ele, tudo isto era simples como um estalar de dedos, simples como um dó-maior na viola, simples como instalar um software pirata.

Joãozinho não precisava de nada disto, ele era especial e podia ir muito além. Naquele dia, Joãozinho estava ainda mais feliz, pois as reportagens dos
jornais tinham-lhe trazido notoriedade. Fazia mais sucesso entre as meninas, que os meninos mais velhos.

O vento estava forte, mas dava para inflar a asa. Joãzinho descolou, sobrevoou o pessoal e ficou parado sobre a rampa vários metros acima dos olhares que o acompanhavam, começou a acelerar o seu parapente até chegar por cima da aterragem.
Diante da expectativa de todos iniciou mais uma formidável sequência de acrobacias, teminando por mergulhar a toda velocidade contra a "Mãe-Terra" que o aguardava de braços abertos.

Antes ou depois deste dia, não importa, Joãozinho não percebeu que uma névoa entrava pelo fundo do vale, trazendo consigo uma infiltração de ar frio que entrava como uma faca por baixo de todos os terrenos aquecidos pelo sol enquanto fortes térmicas disparavam sucessivamente, até que uma grande extensão microclimática se transformou numa ascendente que se expandia em todas as direções.

Joãozinho começou a subir rapidamente, ao mesmo tempo que as nuvens se formavam tão rapidamente quanto ele subia, justamente sobre a sua cabeça.
O vento aumentava e Joãozinho viu-se, de um instante para o outro, sem nenhuma visibilidade, com ventos fortíssimos, subindo sem parar para dentro da gélida incógnita duma nuvem, que apesar de recém nascida, desenvolvia rapidamente toda a maturidade que o Joãozinho jamais teria tempo de adquirir.

Maturidade esta que certamente lhe teria impedido de descolar naquele tipo de condições.
Maturidade esta que certamente lhe teria feito desconfiar da sua pretensa habilidade acrobática.
Maturidade esta que certamente teria garantido, que Joãozinho um dia se tornasse adulto.

Texto de Silvio Ambrosini, “Tenras idades, tenros ossos” (adaptado por moi même).

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