Quando as nuvens dançam

O Caminho Tenebroso

Ás vezes ela se abate sobre nós como uma avalanche, destroçando-nos como uma bomba, condenando-nos ao padecimento e, por fim, nos soterrando sob nossos próprios escombros. Outras vezes ela chega de mansinho, entra pela porta dos fundos, sem bater, instala-se em nossas células, alimenta-se de nós e começa a crescer em surdina. Quando nos apercebemos, já é tarde demais. Nossa vida muda de um dia para o outro, nossas certezas evaporam e a sombra do medo se deita sobre nossa realidade. O nome dela é doença e ela é um dos vários caminhos tenebrosos que podemos nos ver obrigados a trilhar em nossas vidas.
Muitos são eles, mas sempre que, por infortúnio ou inconscientes escolhas, nos descobrimos afundando na lama, nossa primeira reação costuma ser uma rejeição sistemática da situação na qual nos encontramos e um esperneio histérico que não nos ajuda em nada, apenas nos mata mais rápido. Outros, os guerreiros, geralmente menos suicidas e mais sábios com o pouco ou muito tempo que lhes resta, resolvem investir toda a energia em tentar sobreviver. Nesta luta pela sobrevivência, a proximidade do fim se torna o combustível que os impele a seguir lutando e a morte se revela companheira e conselheira.
Entre os sobreviventes a curto ou longo prazo, alguns se viciarão na experiência dolorosa. São aqueles que estão sempre namorando com o inferno e se alimentam da dor. Eles não acreditam na felicidade ou, se acreditam, ela está sempre em um acontecimento isolado e transitório, em algum lugar do passado ou futuro, raramente ali onde eles se encontram naquele exato momento. São os hipocondríacos, as eternas vítimas, os viciados em prazer, os donos da verdade, os vampiros, os magos negros, os orgulhosos, os covardes, os frustrados, os aproveitadores, os manipuladores, e todos aqueles que, direta ou indiretamente, insistem em sofrer e fazer sofrer.
Outros guerreiros, um pequeno grupo de bravios desbravadores, terão talvez a preciosa oportunidade de se perguntar como é que foram entrar nesta fria. Se eles não se contentarem com a tediosa, rápida e infértil explicação de que se trata do puro acaso, quem sabe eles iniciem sua primeira grande jornada espiritual. Não é preciso estar nas trevas para começar a pensar na importância da luz, mas muitas vezes é isto que acontece. Precisamos daquela escuridão que incapacita nossa visão para percebermos que podemos ver de outras maneiras, que é possível olhar para dentro. E mesmo que não estejamos em uma situação muito ruim, voltar-se para nosso interior é sempre um caminho tenebroso.
É necessário estar cansados de dar a culpa aos outros e ao mundo e é imprescindível ter coragem. Pois não somos quem pensamos ser. Somos imensamente maiores do que imaginamos. Infindos, fantásticos e grotescos, somos inexplicáveis. Mas nosso primeiro dever de criaturas magníficas é descobrir nossas ilusórias limitações e transgredi-las. Não há progresso sem transgressão, ouvi dizer, e é verdade. Encontrar um muro emocional, reconhecê-lo, não aceitá-lo, desenhar uma passagem, atravessá-la com a certeza de que sobreviveremos e que somos capazes de criar um novo universo além dele, isto é evoluir. Pouco importa o que acharemos do outro lado, o importante é fluir rumo ao desconhecido, é navegar na imensidão.
Paremos e perguntemos: quais são os muros? E descubramos seus furos. Não há nada de permanente, tudo é mutável e mutante. Apenas aquele que compreende isso é capaz de aproveitar plenamente seu inato potencial de ser criativo e criador. Há inúmeras oportunidades para fazer isso, mas elas só se apresentam para aqueles que não têm medo de caminhar no escuro.
Fulana está deprimida, se considera uma pessoa triste e acha que a vida é um fardo. Um dia ela resolve abandonar sua cidade, tudo aquilo que faz, que a entedia e em que, por condicionamento ou por inércia, ela acredita, e se aventura a ser diferente do que sempre foi. Depois disso, ninguém nunca mais a ouve falar em depressão. Sicrano tem uma vida confortável, é casado, se orgulha de ser forte, “mulherengo” e adora ter casos extra-conjugais, mas sempre sente um estranho vazio que não sabe explicar. Um dia ele ousa mudar tudo e abrir o jogo. Ele se separa, encontra outra mulher, se apaixona de uma forma que nunca pensava ser possível, e se arrisca na aventura de conhecer sua própria fragilidade e ser fiel à mulher amada. Uma felicidade desconhecida emerge de dentro dele. Beltrana é casada, ama o marido, mas um belo dia ela se apaixona por outro. Sem saber como lidar com o fato de que está amando dois homens, ela tem a louca e perigosa idéia de dizer a ambos, marido e
amante, que quer ficar com os dois. Ela o faz e, por incrível que pareça e por amor, eles aceitam a história. Em meio ao aparente drama polígamo, os três descobrem que o amor não tem forma e que são capazes de amar muito mais do que pensavam. Não se trata de histórias fictícias. São verídicas, aconteceram de fato e eu testemunhei. E há histórias conhecidas como a de um assassino que virou monge e se iluminou, de uma mulher que venceu batalhas porque ouvia vozes, de um estudante reprovado em um exame de admissão a uma universidade que depois se tornou um gênio da física, e muitas mais. Todos os grandes homens e mulheres que conhecemos e desconhecemos são pessoas que não se acomodaram nem se curvaram a seus próprios padrões emocionais de raiva, ignorância, orgulho, mesquinhez, inveja. Eles aceitaram o desafio de mudar a si mesmos e, assim, recriaram sua própria realidade, apesar dos obstáculos que tiveram que superar e provavelmente também graças a eles.
O caminho espiritual não está além das trevas. Luz e escuridão, dor e prazer, vida e morte, tudo isso faz parte de nós. Tudo acontece lá fora e acima de tudo aqui, em nossas profundezas, e é possível captar isso quando arriscamos viajar em nós mesmos. Nossos pensamentos e emoções são nuvens, mansas ou velozes, doces ovelhinhas ou monstrengos relampejantes, nos descortinam paraísos e infernos. Não precisamos voar com elas rumo à inevitável extinção. Podemos começar descobrindo que não somos feitos apenas daquilo que pensamos e sentimos, somos bem maiores que isso. Depois, podemos observar que as nuvens são vapores de água que correm os céus, mas também se convertem em chuva que percorre a terra, gelo que derrete ao sol e vida nos lábios de quem tem sede. Ao estudar as nuvens nos transformamos no firmamento, que as abraça e as vê passar, depois nos tornamos o universo, que as sustenta, sem fazer diferença entre as nossas nuvens e as dos outros, as estrelas e os meteoros, o
dia e a noite. Por fim, despertamos para a beleza essencial da vida, que a tudo tece, e compreendemos que quaisquer caminhos, sejam eles luminosos ou tenebrosos, como tudo aquilo que existe e nós mesmos somos apenas feitos de vida em movimento. Vida que pode ser pavorosa ou sublime, estar em tragédia ou arrebatamento, vida bandida ou florida, mas, sobretudo e além de tudo, vida.

Texto escrito por Antonella Sigaud

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