Dores incapacitantes

"Há doentes internados em hospitais que têm mundos dentro de si para contar mas sem alguém que os oiça. São rotulados de doentes mentais e abandonados aos fármacos potentes ou aos irrevogáveis silêncios institucionais!"

Hoje, li esta frase e lembrei-me do meu amigo Zé Maria.

Acabado de ficar internado num quarto de hospital após um acidente, fui avisado da eventual chegada dum novo companheiro de quarto. Alertaram-me que teria de conviver com um possível doente mental, que estaria a ser mudado de outra enfermaria pois tornara-se absolutamente insuportável para os restantes doentes.

O Zé Maria tinha 88 anos e uma perna partida. Todos (incluindo a família) pensavam que ele sofria de algum tipo de doença mental. Passei noites terríveis na companhia do Zé Maria. A minha sanidade mental ficou abalada com a convivência. A pouca comunicação que conseguíamos ter, era ensombrada pelas noites de intensos monólogos e gritos a alta voz. A conversa do Zé Maria era sempre igual e apresentava sempre os mesmos três intervenientes. A voz dele mudava, consoante o interveniente que entrava em cena. Tudo era repetido numa espécie de “loop” continuo até á exaustão.

Num certo dia, assisti á mudança do penso do Zé Maria e fiquei enojado. Tinha uma infecção enorme, cheirava a carne putrefacta e os ossos estavam partidos e expostos. Perguntei aos enfermeiros se aquilo era normal, ao que eles responderam que não era, mas que a amputação seria o desfecho mais provável.

Não conseguia parar de Imaginar as dores a que estaria sujeito o pobre do Zé Maria. Tentei saber o que se tinha passado com ele. Os familiares contaram-me, que ele tinha caído no lar (onde estava alojado) e partira a perna. Estava ali á espera que algum médico se interessasse pelo seu caso e o operasse.

Nessa noite não consegui dormir a pensar na minha dor pós-operatória e no quanto ela seria insignificante, quando comparada com o pesadelo constante daquele homem.

Passei a noite a pedir analgésicos e comprimidos para dormir para ele. Finalmente conseguimos (ambos) dormir ao terceiro dia. Na manhã seguinte descobri um novo Zé Maria. Aquilo que parecia demência, tornou-se claro (para mim) que poderia ser causado por uma dor inexplicável e incapacitante que despertava os seus fantasmas.

Nas noites seguintes, voltei a pedir que lhe dessem os analgésicos e comprimidos para dormir. Ao longo dos dias seguintes, o Zé Maria começou a ter momentos de extrema lucidez, onde me contou algumas histórias acerca da sua vida, mas eram as noites que despertavam os fantasmas.

Sempre que lhe perguntava acerca das dores, a resposta era sempre a mesma: As dores são minhas!

Nunca o vi queixar-se a ninguém das suas dores e fui-me apercebendo que os seus diálogos solitários eram também a sua forma de extravasar a dor.

Numa certa noite, entendi algo que não era perceptível a ninguém! Tentei perceber a conversa do Zé Maria e foi-se tornando claro, que “aquilo” era a descrição pormenorizada e detalhada do seu acidente, que estava demasiado vivo na sua memória. O Zé Maria vivia preso na sua dor e era perseguido pela lembrança do sucedido. Consegui que os enfermeiros percebessem o que se passava e se interessassem pela situação do Zé Maria.

Dias mais tarde ele foi levado para ser operado. Calculei que lhe iriam amputar a perna ou que dificilmente resistiria á cirurgia. Perdi o rasto do Zé Maria por uns dias, pois tive alta hospitalar nesse mesmo dia. Três dias depois, voltei ao hospital para tratamentos e fui procurar o meu amigo Zé Maria.

Esperava encontrar um farrapo humano com um membro amputado. Encontrei um homem idoso, desperto, a comer com gosto e a sorrir sem dentes. Ele perguntou-me se eu estava melhor? Sorri e respondi afirmativamente.

Perguntei-lhe se tinha dores e a resposta era a de sempre, só que desta vez esboçava um sorriso enorme. Os enfermeiros disseram-me que médicos salvaram-lhe a perna e ele iria recuperar totalmente e voltar a andar.

"Há doentes internados em hospitais que têm mundos dentro de si para contar mas sem alguém que os oiça. São rotulados de doentes mentais e abandonados aos fármacos potentes ou aos irrevogáveis silêncios institucionais!"

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