O Motor da Vida

A festa está fervilhando. Há pessoas de todas as proveniências com tipos de vidas completamente diferentes. Mas não importa quem elas são, apenas interessam a música alta, as luzes delirantes, as roupas de marca, os corpos arfantes, a anestesia alcoólica, as pupilas dilatadas e reluzentes. As mãos procurando por membros expostos, a fome buscando a carne fresca. Voltar para casa sem ninguém pode ser sinônimo de fracasso. É preciso ter molejo, é necessário consumir. Bebidas picantes, músculos rijos, ter histórias para contar depois. Para isso trabalhamos o ano inteiro. Para poder nos oferecer alguns dias de delírio e olvido após tantos meses de labuta desgastante. Os sorrisos plásticos estão colados às faces entre um gole e outro, os cheiros se mesclam como coquetéis tropicais e já não se sabe de onde vêm nem para onde vão. A angústia espasmódica lampeja nos olhares desatentos antes dela ser novamente camuflada pela euforia mecânica. As palavras deixam os lábios como bolhas que explodem no ar contra as palavras alheias. Todos falam, mas ninguém escuta ninguém. Não há tempo para isso. É imperativo rir aos cacarejos e provar que somos felizes. À medida que a noite passa dá para sacar quem já comeu quem, mas não quer repetir, quem vai comer quem, e querer esquecer logo depois, quem até gostaria de comer alguém, mas não pode, seja por falta dos atributos requeridos pela moda vigente, seja por uma indesejada companhia que está ao lado de fulano, que ele na verdade não queria ter levado à festa nem manter em sua vida, mas que tem que manter, por medo da solidão.
Tudo é sexo. Já dizia meu padrasto e ele tinha razão. O nascimento é a cabeça sendo expelida por uma vagina suculenta rumo a um mundo sexuado. Muito cedo as crianças começam a estudar e brincar com suas genitálias, apesar da insistência dos adultos para que estas permaneçam bem ocultas e intocadas. Mas se um dia alguém pensou que as roupas desviariam a atenção das partes baixas, estava muito enganado. Inúmeras pessoas se aprumam como pavões em busca de fêmeas. Elas querem agradar. Nós somos todos, de uma forma ou de outra, vampiros em busca de sangue. Queremos aprovação, reconhecimento, os olhares tatuando-se em nossas peles, queremos nos lembrar que existimos através do toque das mãos dos outros. Querer ser queridos faz parte da nossa odisséia. Toda criação humana é a energia sexual se manifestando rumo ao louvor alheio. E até mesmo aqueles que abdicam do sexo que se faz vivem o sexo inexplícito das crenças e dos objetivos a serem alcançados para experimentar o mesmo tipo de enlevo, uma espécie de deleite sexuado.
No entanto, apesar de ser o combustível que nos move, o sexo é e sempre foi razão de discórdia. Na história humana ele foi visto tanto como aberração demoníaca quanto como objeto de idolatria sem alma. O poder desta energia nos apavora e ao mesmo tempo nos seduz. Nós tentamos de tudo para dominá-la. Escolhemos a castidade, o auto-controle, os diferentes tipos de união sexual, a constante sedução ou a manipulação da sexualidade dos outros. Quando não entendemos nada desta energia, a reprimimos ou fazemos mal uso dela, nos tornamos violentos, fazemos guerras, ou nos tornamos depressivos, definhando em diversos tipos de lento ou rápido suicídio. Várias são as ardilezas, mas nunca conseguimos totalmente domar o rugir da vida dentro de nós. E é bom que não sejamos capazes de fazê-lo, pois a vida não quer ser domada.
A vida quer ser vivida. Entretanto, para viver de verdade temos que parar de fugir de quem somos. Temos que olhar no espelho e ver tudo, aquilo que pensamos ser e todo o resto submerso que faz a composição de quem realmente somos. É muito triste ver tanta infelicidade acontecendo em volta do sexo, ao redor de um potencial que poderia nos levar ao êxtase e nos fazer voar. Entretanto, para reverter isso temos que parar a festa e começar a celebração. Temos que achar o tempo de respirar, de realmente olhar uns para os outros, de sentir o cheiro das entranhas saindo pelas narinas, de entender de que tristezas e alegrias essas entranhas são feitas, de sentir a nossa mortalidade em cada toque e cada instante. É bom brincar, mas não é isso que estamos fazendo quando nos consumimos com ferocidade.
Paremos e observemos com atenção o mundo à nossa volta. Se olharmos bem, veremos a maioria das pessoas andando com seus corpos vazios de sentido e de emoção. Enxergaremos robôs funcionando de acordo com os ponteiros da sociedade. “Olhe para este tipo de roupa, compre este tipo de carro, deseje este tipo de corpo, fale deste tipo de assunto, tenha este tipo de sexo.” Manipulados, manipulados, manipulados. E infelizes. No fundo do fundo da alma, naqueles momentos de silêncio dos quais geralmente fugimos ou então nos quais nos escondemos, somos um bando de desesperados. É isso que somos. E é preciso ver a realidade, não negá-la nem aprová-la, mas reconhecê-la, para poder despertar, ir além dela e recriá-la de outra forma.
Tudo é sexo, é verdade, mas não sexo feito de jovens e belos corpos e identidades imponentes que tem que ser alimentadas, enfeitadas e endeusadas como se pudessem ser poderosas, como se não fôssemos todos, de qualquer maneira, acabar sendo deglutidos por gosmentos vermes debaixo da terra. O sexo é muito mais que corpos que se desejam, que imagens que se vendem, que pessoas tentando constantemente ser e aparecer, ter isso e aquilo, comer e foder umas as outras. Trepar é uma delícia, mas o sexo pode ser e é muito maior que isso. O enlevo que podemos alcançar com a música sexual é tão mais rebuscado e transcendental do que aquilo que nos vendem como desejável que realmente dá pena ver o que estamos fazendo. Hoje somos uma espécie patética de andróides se masturbando com prazeres baratos.
Entretanto, nós poderíamos estar sentindo. Vibrando. Reluzindo. Inspirando. Criando. Descobrindo. Mergulhando uns nos outros e, acima de tudo, na vida. Vivendo cada instante como se ele fosse uma vagina sagrada se abrindo para o nosso nascimento. Palpitando de um tesão incomensurável pela existência. Transbordando a excelência daqueles que não se contentam com a mediocridade a nível algum. É este tipo de transa, de vida, de encontros, de trabalho, de amizades, de dimensão existencial que cabe a nós invocar através da forma com a qual damos cada passo. Não se trata de controlar cada um de nossos atos, mas de se abrir. Escancarar as pernas de nossas mentes estreitas e dementes. Derrubar os padrões que impedem a expansão de nossos sentidos. Buscar entender profundamente que o mundo é maior que nossas idéias. Apenas quando escolhermos o tesão pela vida acima de nossas ridículas injeções de conforto e segurança poderemos realmente acessar uma felicidade possível.
Quando o champanhe anuncia um ano novo feliz, a sensação borbulhante é de que algo realmente poderia estar acontecendo naquele exato momento. E está. Mas a maioria de nós se esquece disso assim que acabam a bebida e os feriados. Os sentidos embotados pela aceitação de um mundo imbecil preferem ignorar que a felicidade realmente só existe naquilo que é novo, ou seja, constantemente redescoberto. A vida é feita de ondas de energia sexual e palpitante. Nunca seremos exímios amantes da vida e nunca teremos uma vida orgástica se não nos tornarmos conscientes que cada momento pede um novo movimento. Hoje somos como cachorrinhos copulando uns com os outros e fornicando as nossas próprias trajetórias. Mas poderíamos ser como harpas devolvendo sons de encantamento, nos comunicando com tudo aquilo que existe, tocando a pele da vida com a plena consciência do frisson que nela provocamos e deixando-nos envolver por suas respostas orgânicas, por seus movimentos constantes e surpreendentes, pela suavidade fluvial de seu amor inebriante.

Texto de Antonella Sigaud

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