A emergência da poesia

Não é possível falar de transcendência sem falar de poesia. O que nos faz poder ver e sentir a força do oceano no olhar da pessoa amada? O que pode nos despertar para a preciosidade de cada momento que passa, que é absolutamente único e não volta nunca mais da mesma forma? O que nos fará compreender qual o melhor rumo para a sociedade e aquilo que realmente importa na vida humana? Hoje em dia a física confirma o que antigos textos de sábios e mestres espirituais já afirmavam, que a solidez do mundo é apenas aparente e ilusória. Durante muito tempo a ciência somente investigou a natureza e os processos naturais fazendo uso da óptica racional e desconsiderando a influência do observador sobre o objecto observado. Mas isso está a mudar.

A mente humana está a expandir-se e, juntamente com ela, o universo está a ficar maior. A verdadeira e honesta observação daquilo que é real tem que incluir e ser consciente da subjectividade daquele que a realiza, inseparável do resultado final daquilo que é pesquisado. O factor subjectivo é aquele que determinará tanto o foco escolhido numa pesquisa científica quanto o direcionamento que damos individual e coletivamente às nossas vidas e, em última instância, ao destino da humanidade.

Quem somos nós profundamente, o que queremos alcançar, onde queremos chegar, qual é o nosso verdadeiro propósito? Até que ponto aquilo que pensamos, sentimos e com que sonhamos pode influenciar e modifica efetivamente a realidade à nossa volta? Será que o nosso estado mental durante as ações do quotidiano é importante? Essas são questões fundamentais que temos que nos perguntar se quisermos sair do piloto automático e participar conscientemente da criação de causas que surtam efeitos saudáveis e ajudem a tecer um futuro melhor para nós e para quem está à nossa volta. Ao pararmos e ousarmos questionar-nos sinceramente damos início a um novo e urgente movimento. Trata-se do despertar da unidade e da emergência da poesia.

Aborígenes australianos acreditavam que o mundo era uma manifestação de sonhos da dimensão espiritual que tinham que ser “lidos”, invocados e cantados em linhas musicais para poderem tomar uma forma física. Xamãs toltecas e diversas sabedorias ancestrais falam igualmente da imprescindível aprendizagem da arte de sonhar o mundo. Se olharmos atentamente e durante bastante tempo para o universo no qual vivemos, saberemos reconhecer a conexão dos devaneios e sonhos com tudo aquilo que existe. Não há nenhuma casa ou instituição, nenhum objecto ou projeto, nenhuma descoberta científica, nada que seja feito pelo homem que não seja fruto dum sonho, um devaneio, uma idéia, um conceito.

O mundo concreto e material nasce, por assim dizer, do mundo abstracto e imaterial. Nós somos, por natureza, criadores compulsivos de nossa realidade e na maior parte das vezes não temos consciência disso. O grande desafio que enfrentamos hoje como espécie é o de aprender a sonhar um mundo melhor. Precisamos entender que os sonhos são a base de nossa realidade, que eles nascem de uma fonte ilimitada, que temos não somente a capacidade natural como também a responsabilidade de “traduzir” este inato potencial energético numa linguagem que nos ligue e nos faça evoluir, na criação de uma realidade material mais dinâmica e harmônica. O livre arbítrio apenas pode existir a partir do momento que não sucumbimos mais de forma passiva ou indiferente àquilo que existe, mas que nos entendemos como partes activas da criação de tudo aquilo que percebemos com os nossos sentidos.

Criar um novo mundo é uma tarefa poética. Ao escrever isso, refiro-me a mais alta poesia, inerente à dança perfeita dos átomos entre si, aquela que possibilita a multiplicidade de organismos, as fabulosas e inumeráveis manifestações da vida. Podemos ver oceanos que nos atraem e ligam aos olhos da pessoa amada, mas também conseguimos ver furacões, precipícios e abismos pavorosos que nos fazem fugir dela. Nosso olhar é o grande criador ou destruidor dentro de uma história de amor, na nossa jornada pessoal e também em toda a nossa trajectória humana. Ao vermos um mundo vil e acreditarmos que a desonestidade e a corrupção fazem parte da essência humana e, por consequente, são características perenes e imutáveis, tornamo-nos seres paranóicos que estão constante e desesperadamente tentando proteger-se e defender dos possíveis perigos que nos circundam. E por mais que corramos, sempre acabamos sendo atacados e nos tornando vítimas dum mundo cruel que ajudamos a projectar.

Não se trata de colocar lentes cor de rosa e fechar os olhos para todo o mal que acontece. Não é isso. Entretanto, se queremos sonhar bem e de forma impactante, é imprescindível acreditar que somos essencialmente mágicos e capazes de criar um mundo melhor. É inadiável começar a ser melhores desde agora. Não há descanso no trabalho espiritual. Temos que descobrir como pensar, sentir, olhar, sonhar melhor. Creio já ter mencionado em outros textos que, etimologicamente, a palavra “respeitar” vem do latim “re-spectare”, olhar de novo. É isso que temos que fazer. Respeitar a vida. Olhar sempre de novo para ela.

Felicidade e sofrimento são interpretações da realidade. Somos nós que atribuímos valor aos acontecimentos, à dor e ao prazer que eles provocam. O caminho espiritual chama-nos para ir além dos estados dolorosos e prazerosos, compreender que eles são apenas etapas, versos de nosso poema. Temos que organizá-los na nossa estrutura emocional de forma a não obstruir o fluxo da nossa criação, subordiná-los a um propósito maior, sempre mantendo a visão da obra-prima, daquilo que queremos manifestar com a nossa caminhada sobre a Terra. Ou seja, perguntemos a nós mesmos que tipo de políticos queremos ver no poder, com que tipo de amantes, parentes, amigos, vizinhos, cidadãos desejamos relacionar-nos? Ao invés de esperar que eles “apareçam” ou simplesmente sejam de acordo com nossas expectativas, sejamos aquilo que esperamos dos outros.

Pode parecer impossível, mas a lei da vida é de uma clareza exuberante. Somos projectores de energia e a realidade é o filme que projectamos, o espelho límpido dos nossos sonhos e de quem somos. Por tudo isso, sejamos poesia. Não apenas naquilo que falamos ou escrevemos, mas acima de tudo em como caminhamos pelos nossos dias, em nossa compaixão, em como olhamos para a vida e para a natureza, como respeitamos o próximo e reverenciamos tudo aquilo que existe.

Acreditemos e busquemos os grandes sonhos, aqueles que sonhávamos quando crianças. Sejamos fiéis a eles. Qual criança não sonha com um mundo melhor? Vejamos nossos sonhos evaporando, condensando-se como grossas nuvens e chovendo belezas, espanto, alegria, verdade, amor, religiosidade, criatividade, sobre tudo aquilo que vive. Sejamos a chuva permanente e abundante, o maior dilúvio de todos os tempos, sejamos nós aquela mística e sensual ressaca dos olhos amados e arrastemos a humanidade inteira nas gigantescas ondas de nossa fé inabalável.

Texto de: Antonella Sigaud

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